domingo, 24 de julho de 2011

LIVRES LEITURAS LÍRICAS


LIVRES LEITURAS LÍRICAS:
Sobre o livro “O carteiro e o poeta”, de Antonio Skármeta
            O livro “O carteiro e o poeta”, cujo nome real é “Ardente paciência (O carteiro de Neruda)” – título original muito mais significante e poético que o da versão brasileira, mais comprometido com a comercialização da obra -, brindou meus olhos nestas minhas leituras de julho com metáforas de sonhos e pesadelos.
         A obra nos conta a trajetória de Mário Jimenez, jovem de 17 anos (ops! primeira diferença para a versão cinematográfica da obra: o personagem é muito mais novo que o apresentado no filme), que exerce, na Ilha Negra, a função de carteiro do poeta chileno Pablo Neruda. A narrativa, ambientada no agitado período político de 1969 a 1973 no Chile, nos mostra, em seu desenrolar, o surgimento de uma amizade e cumplicidade entre o carteiro e o poeta. Interessante perceber que a aproximação de personagens tão distintos se intensifica à medida que as propostas comunistas de Salvador Allende ganham força entre os eleitores chilenos – o ápice da amizade entre Mário e Neruda coincide com a chegada de Allende à presidência do Chile, assim como o trágico fim de ambos os personagens acontece logo após o assassinato de Allende (quem vier com aquela historinha de suicídio, contada por Pinochet, merece 100 anos de solidão e reclusão numa biblioteca pra deixar de ser otário e alienado) e o início do golpe militar dado pela direita chilena. O próprio título original da obra (“Ardente paciência”) traz relação com o contexto histórico e político do Chile; faz parte do discurso proferido por Pablo Neruda, quando este recebe o almejado Prêmio Nobel de Literatura: “só com ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens” (ops novamente! A versão cinematográfica de Michael Radford, bem dirigida – ponto positivo - e digna de Oscar – xiiii! -, não apresenta os laços História e ficção tão intensamente emaranhados – apesar de sutis, sendo arriscadamente invisíveis para leitores distraídos – pela narrativa lírica de Skármeta).
O discurso de Neruda, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, é poético e solidário, rico em metáforas e ideais socialistas, e assim é o conteúdo da obra de Skármeta: personagens ilustres e personagens comuns, independentemente de suas classes sociais, liberam metáforas - às vezes intencionais, às vezes ingênuas - em discursos diretos, entremeados pelo discurso onisciente de um narrador, que apresenta o universo de sua narrativa num tom ao mesmo tempo lírico e quixotesco. O protagonista Mário passa por profundas transformações durante a narrativa: inicia parvo e preguiçoso, desconhecedor de metáforas (apesar de usá-las inconscientemente), cresce como imitador dos poemas de Neruda (com os quais conquista sua musa Beatriz), depois ganha o status de poeta da Ilha, chegando a ousar expor seus poemas a concursos literários, até o seu desaparecimento e esquecimento, vítima do regime ditatorial chileno instalado em 1973. A trajetória do protagonista, a ascendência e queda das metáforas nos discursos diretos dos personagens, a mudança no tom do narrador (de irônico e lírico, para lírico, sensual, burlesco e sonhador, encerrando-se amargo e seco) coincidem com o processo político de democratização e ‘desmocratização’ da república chilena, do sonho ao pesadelo; a ardente paciência se apaga, mas ainda fervilha na obra e no café amargo tomado pelo narrador nos momentos finais da narrativa.
E assim escrevo essa livre leitura lírica: docemente encantado com a obra e amargamente preso ao teor das conversas finais do narrador: quando o Chile e nós teremos uma democratização real (e não do R$ Real, como os governos nos propõem)? Quando os carteiros poetas serão lembrados? Até quando a nossa ‘ardente paciência’ vai durar? Como o narrador do livro, por enquanto, tomo o café amargo.

Franco-Fragmento-Atirador:

“- De agora em diante se usa a cabeça só pra carregar o boné.”
(Discurso direto do personagem Mario, diante de um soldado, durante a ocupação do exército na Ilha Negra – in: SKÁRMETA, Antonio. “O Carteiro e o Poeta” [tradução de Beatriz Sidou], Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 108)

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